sábado, 10 de maio de 2014

Cinco poemas de Ana Estaregui






Ana Estaregui coleciona objetos do acaso e os cola na parede: pedras, galhos, pétalas de flores, pequenos brinquedos, quem sabe uma chave velha, enferrujada. Aprisiona instantes em lâminas de vidro. E escreve. Num tempo em que a palavra poesia é uma pedra desgastada pelo uso, Estaregui pinta, esculpe, borda, disseca (sim, esta também é uma arte) a palavra. Sua poesia é daquelas que pega pelo susto, o susto que habita qualquer cotidiano,  o improvável que só quem tem olhos para ver é que se arrisca a experimentar.




fotografia: Jonathan Blair


às coisas sou blasé

finjo não ver beleza
nas pequenas xícaras
disfarço
a ternura
pelas  estampas
de frutas tropicais
na toalha
de plástico
da mesa da cozinha
[por fora lisinha
por dentro manta - que nem carpete]
dissimulo
indiferença às casquinhas
craqueladas
espalhadas
de pão francês
e ao tom marrom caramelo escuro


dos pratos duralex.



geologia
essas minhas linhas
da mão
me dizem que nasci
sem sorte
pro amor
a linha do coração: uma trilha
entrecortada descontínua atravessada
andarilha
segue até o meio da palma, aos buracos
aos tropeços, ainda que sem pedra
no caminho
do médio
ao indicador
como se o abismo
fosse apenas


um vão entre os dedos


sala de estar
papoulas e o escafandro
deixaram tontas
as libélulas da sala
de estar
que reliam as lombadas
dos livros
tentando traduzir
pras hélices delas
e do ventilador
o idioma terrestre
essas coisas tontas do mundo.



poemas de kitnet


I.
não desejo mais nada
além duma quitinete
bem ajeitada e perto do metrô
quero uma varanda que dê
pra muitas janelas
pra ver tvs sincronizadas
janela sobre janela
passando novela
azuis vermelhas verdes amarelas
enquanto eu
encho d’água minhas plantas de sombra
e vejo simultâneas
novela sobre novela

como se fosse pintura.




II.
(lifestyle)

na quitinete de 45 metros
tenho todas as solidões
que envolvem poeiras e
buracos desocupados
roseira sem flor e rosas avulsas
ganhadas no dia da mulher

tem o filtro de barro que não enche

sozinho os copos
os lírios que nascem e morrem
cristalizados

em fotografias digitais
na velocidade do congelador

criar crostas brancas
e o teto refletir a rua em formas móveis


e geométricas
toda noite
toda noite tem as janelas
dos vizinhos classe média
tingindo o escuro com

as cores luz do plasma
e dos cristais líquidos

os garfos a mais

as facas a mais
as taças de vinho que esperam
os talheres que sobram
sou só eu, não preciso de mais

que um copo
um garfo
uma faca
um prato

e um horizonte entrecortado de prédios desbotados.


uma palavra pode salvar uma manhã

em algum lugar leio a palavra monóxido. 

e durante a manhã fico pensando nela

como se fosse sólida

fico amando ela e ela me deixa bem (talvez me ame)

gosto de saber que existe essa palavra: monóxido

pra mim ela é inteira feita de titânio e pesa

tanto

que nem cimento e mesmo sendo gasosa

assenta as páginas brancas

das coisas que nem foram escritas ainda


[Ana Estaregui é de Sorocaba e vive em São Paulo. Pretende, até o final de 2104, publicar seu primeiro livro, chá de jasmim.]

3 comentários:

  1. Que encantadora surpresa conhecer a poesia de Ana Estaregui. Parabéns pela coluna, queridas Micheliny e Nina.

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  2. Está uma apreensão de guardados que se iluminam, luz caseira que atinge outros universos...gostei!

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