sexta-feira, 9 de maio de 2014

Correspondências: o homem, a arte -1

Verde-inazul

Tem um grito de medo amarrado dentro de mim
no abrigo da minha garganta –

as cores que inexistem saltam pros olhos

e

choram

[Dani Carrara, Rascunho]
*

Cavalo amarelo chinês, arte rupestre c.a. 17 mil a.C. Lascaux, França. 


A magia da imagem da caverna reside em seu ser, não em seu ser visto.
- Marshall McLuhan


A figura acima reproduz uma das várias pinturas que decoram as paredes das cavernas de Lascaux, na França. A essa figura foi dado o nome de Cavalo amarelo chinês, mas, pelo tamanho do ventre, bem pode-se concluir que se trata de uma égua prenhe.

Note-se a capacidade doa artistas da pré-história em transmitir a ilusão de movimento - os animais são quase sempre representados andando ou correndo. Nesta figura, observe como o artista, com poucos traços, registrou o movimento das patas do animal. Merece menção também o fato de que a maioria das pinturas rupestres são figuras de animais; raramente encontramos representações de seres humanos.

Os artistas que faziam essas pinturas rupestres usavam carvão, cinzéis de madeira, terra e tinturas vegetais, sendo que muitas eram feitas em locais de difícil acesso, como o teto das cavernas, imagine só o desconforto na execução de tais obras! Além disso, chama a atenção o fato de que algumas figuras foram feitas em locais de muito pouca luminosidade, provavelmente à luz de tochas.

Descoberta por quatro adolescentes em 1940, a gruta de Lascaux - situada na região da Dordonha, na França - é hoje uma referência no campo da arte rupestre. Suas paredes são pintadas com bovídeos, cavalos, cervos, cabras selvagens e felinos. As pesquisas feitas nas últimas décadas levaram os estudiosos a concluir que as pinturas foram elaboradas há 17 mil anos. Contudo, certos indícios, tanto temáticos como gráficos, levam a pensar que algumas podem ser mais recentes, sendo tal hipótese confirmada por datações com carbono 14 em cerca de 15.500 anos.

Em Lascaux, nos anos 1950, começaram a aparecer indícios de deterioração das pinturas devido sobretudo ao gás carbônico da respiração dos visitantes. Por isso, em 1963 decidiu-se proibir visitas turísticas à gruta. Desde então foram tomadas diversas providências para controlar a atmosfera no interior da gruta e restaurar algumas de suas pinturas. Para atender à enorme demanda turística foi construída e inaugurada em 1983 uma réplica da gruta - Lascaux II - localizada perto da original.

Clique na imagem para seguir com imagens do Parque Nacional da Serra da Capivara e a música de Hermeto Pascoal.

Essa é uma das figuras que mostram desenhos de pessoas e animais encontradas em cavernas e grutas do Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, Piauí. Para ter uma ideia da sua importância, em 1991 a Unesco declarou o Parque Patrimônio Cultural da Humanidade.

Vemos representadas duas figuras humanas perto dos animais, capivaras. Chama a atenção o fato de que os animais são retratados com maior realismo e riqueza de detalhes que as figuras humanas. Os artistas que desenharam essas imagens não levaram em conta proporção ou perspectiva. Não aparecem cenários nem é possível definir se as figuras humanas são de adultos, crianças, homens ou mulheres. Em todo caso, uma coisa é inegável: assim como os artistas de Lascaux, esses também sabiam transmitir a ilusão de movimento. Repare no dinamismo da imagem, sobretudo o animal que corre acompanhado do filhote, provavelmente uma fêmea.

Infelizmente, muitos registros das vidas dos primeiros habitantes destas terras que hoje chamamos Brasil estão ameaçados por atos de pessoas que, certamente, ignoram a importância de tais sítios para todos nós, estudiosos ou não.
*

Jean-Michel Basquiat. Self-Portrait, 198?.

Certamente, o modo como Basquiat produziu sua obra não foi consequencia de um inundamento de inspiração (não apenas), como uma espécie de sopro sobrenatural. O que faz o modo de produzir do artista e que caracteriza a criação de signos artísticos é a sua exploração e originalidade da organização em relação ao uso dos códigos da linguagem com a qual trabalha.

Como toda e qualquer linguagem, a arte tem códigos, e cada linguagem da arte tem seu código, isto é, um sistema estruturado de signos. Assim, o artista, no seu fazer artístico, opera com elementos da linguagem da arte comliberdade de criação, utilizando-os de forma incomum.

Por não haver regras fixas no modo de produção da arte, o artista desvenda infinitas combinatórias num certo jogo com a linguagem. Articulando os elementos que já fazem parte de seu repertório pessoal de uso do código às novas descobertas de sua pesquisa, o artista produz sua própria linguagem, na própria linguagem da arte.

Tal como os primeiros artistas fizeram arte rupestre - graffiti nas cavernas -, deixando suas marcas simbólicas, o estadunidense de origem haitiana Jean-Michel Basquiat (1960-86), por exemplo, também o fez na caverna urbana, deixando em quadros suas marcas simbólicas do misterioso mundo cosmopolita de Nova Iorque.
Cada artista e sua obra são, portanto, modelos de linguagem revelando experiências em todas as direções. O artista a faz, de fato, porque é sensível aos signos da arte. Por isso é que escolhe dizer, trazer, fazer visíveis suas reações às coisas do mundo, no contexto do seu tempo-espaço, por meio da criação artística.

Do mesmo modo, cada período artístico, cada obra de arte são, então, autônomos e trazem em si sua própria linguagem, com certas características na sua produção, no seu estilo singular.
A linguagem da arte nos dá a ver o mundo mostrando-o do modo condensado e sintético, através de representações que extrapolam o que é previsível e o que é conhecido. É no modo de pensamento do fazer da linguagem artística que a intuição, a percepção, o sentimento-pensamento e o conhecimento se condensam. Nessa construção, o artista percebe, relê e repropõe o mundo, a vida e a própria arte, produzindo imagens únicas e insubstituíveis, imagens poéticas.

Pelo poder de síntese da linguagem da arte, nossa sensibilidade capta uma forma de sentimento que nos nutre simbolicamente, ampliando nosso repertório de significações. Adquirimos um conhecimento daquilo que ainda não sabíamos e, por isso mesmo, transformamos nossa relação sensível com o mundo e as coisas do mundo.

Para algo existir mesmo -
um Deus, um bicho, um universo, um anjo -,
é preciso que alguém tenha consciência dele.
Ou simplesmente que o tenha inventado.
(Mário Quintana)

Para que uma obra de arte exista, é necessário que alguém a crie, que lhe dê vida.

Toda produção artística é o resultado de uma elaboração sígnica que é única, exclusiva de quem a faz, seja um artista consagrado ou você o autor de tal obra. A produção ou a leitura dessa criação carrega todas as referências pessoais e culturais presentes nos seus autores e leitores.

A recepção que você faz do mundo através de seus sentidos, percepção, imaginação, intuição, intelecto não é passiva; você não é um mero receptáculo de informações, influências, conhecimentos, etc. Na verdade, você seleciona o que toca você. Por isso, faz um recorte da realidade, através do seu modo de ver o mundo, do seu jeito de viver a vida e de se emocionar, rir, amar, sofrer, agir, interpretar, expressar. Dessa forma, o resultado de qualquer produção artística que você terá, inevitavelmente, a sua marca, a de sua história, da sua ótica, fruto do ser único que você é.

É exatamente isso o que ocorre com o artista. Ele e, por consequencia, sua obra são produtos de seu tempo-espaço, de seu momento histórico, de sua biografia. Autor e obra sofrem todas as influências de seu mundo físico, filosófico, sociológico, psicológico, político, histórico, religioso, cultural. Assim, quem viveu sob a Inquisição na Espanha tem um tipo de pensamento-sentimento diferente daquele que viveu o Renascimento na Itália,a ditadura no Chile ou a época do Imperial do Brasil.

O artista plástico francês Fernand Léger conta:

"Comecei com alguns desenhos. Depois acrescentei cores, sem dúvida as mais violentas que já empreguei. Era uma necessidade: nós havíamos vivido um período tão sombrio durante a Guerra, naquela lama! Foi uma época em que ataquei o tom puro, e ao mesmo tempo aconteceu isto: consegui libertar a cor.

Fomos eu e Robert Delaunay que travamos a batalha, que trabalhamos para libertar a cor. Antes de nós, o verde era uma árvore, o azul era céu, etc. Depois de nós, a cor tornou-se um objeto em si." (In: Funções da Pintura.)

Vale ressaltar, novamente, que cada um vê e vive os fatos à sua maneira, não significando que todos viveram a mesma época ou os mesmos acontecimentos os tenham visto, vivido, sentido e interpretado da mesma forma. Como diz o velho provérbio, "cada cabeça, uma sentença".

Robert Delaunay, 'Hommage a Bleriot', 1914.

O PODER DO MITO
Joseph Campbell

Você chega a uma câmara gigantesca, como uma imensa catedral, com todos esses animais pintados. A escuridão é difícil de conceber. Estamos ali com luz elétrica, mas logo em seguida o homem que nos guiava apaga as luzes e você se dá conta de que nunca tinha estado em escuridão maior, em toda a sua vida. Era, não sei, qualquer coisa como um nocaute. Você não sabe onde está, se está olhando para o norte, sul, o leste, o oeste. Toda orientação se perde, e você está em meio a uma escuridão que nunca viu o sol. Então eles voltaram a acender as luzes e você vê aquelas gloriosas pinturas de animais. E eles estão pintados com a vitalidade da tinta sobre a seda, na pintura japonesa, sabe, qualquer coisa assim. Um touro que tem mais de seis metros de comprimento, pintado de modo que suas ancas sejam representadas por uma protuberância no rochedo. Eles estavam atentos ao conjunto. A mensagem das cavernas é sobre uma relação entre o tempo e os poderes eternos, que de algum modo deve ser experimentada ali.
*

Aproveitemos para seguir com o curta de animação 'The Thousand Years the Old Man' (Índia, 2006, com legendas em inglês), de Kaveh Kanani (roteiro) e Mehdi Rhamani (direção). 

Completo, aqui: http://www.cultureunplugged.com/play/954/The-Thousand-Years-Old-Man.

2 comentários:

  1. http://amaispuraseda.wordpress.com/2012/11/21/uma-lembranca-da-ternura/

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  2. As vezes as pessoas pelo simples fato de acharem por pensarem que existe algo so porque existe e so porque pensam que têm necessidade de pensar; e se algo so se liga ao pensar,e como se fossem a unica existência, o unico artefato, o unico porque estão num planeta e para além, não conseguem saber mais do que nada; porque se pôem com vaidade a dizer parvoiçes; é facil ser parvo e dizer parvoiçes; isto é para aquela referência que esta ali do Quintana"

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