quinta-feira, 24 de abril de 2014

CORRESPONDÊNCIAS: JOGOS INFANTIS

"Você pode descobrir mais sobre uma pessoa em uma hora de brincadeira
do que em um ano de conversa." - Platão

Pieter Brueghel, o Velho (flamengo, c. 1520/ 30-1569). Jogos Infantis, 1560. Óleo sobre painel, 118 x 161 cm. Assinado e datado. Um verdadeiro estudo antropológico das atividades lúdicas das crianças flamengas do século XVI.

A composição de Brueghel aborda o espaço como um receptáculo inteiramente ocupado por uma multidão que exibe suas habilidades e suas carências, sua sordidez e sua despreocupada movimentação. As personagens parecem arrastadas por uma força superior que os obriga a executar um fragmento lúdico do grande Jogo do Mundo: O Jogo da Sabedoria Popular, da Festa, do Trabalho e do Temor. Tudo ocorre como se as pessoas estivessem sob o toldo de um circo. Mas o espetáculo se apresenta com todas suas atrações ao mesmo tempo, desenrolando num plano horizontal observado de uma elevação, ou da privilegiada colina na qual se situa o espectador dos quadros de Brueghel. E, como num "país das maravilhas", os protagonistas vão repetindo infinitamente o mesmo gesto.

Nos Jogos Infantis a totalidade da ação assume um ar demente. Trata-se de uma praça, mas realmente toda a cidade é ocupada por esses "adultos-crianças" que a invadem com suas pernas-de-pau, seus arcos, equilibrando varas sobre o dedo indicador. É o poder do cotidiano, dos mecanismos consagrados pelos costumes. Tudo está à mercê desse exército de homenzinhos-meninos", cada qual ocupado em sua atividade, com ar ausente, lado a lado com seus vizinhos. Estamos diante do "homem-comum", que cuida de si e que é capaz de comover nossa tarefa: tema universal e insistentemente tratado na literatura flamenga. Mais de oitenta jogos podem ser reconhecidos nesse verdadeiro documento da vida das ricas cidades holandesas do século XVI.

Mas o que mais me perturba na obra é: por que os jogos não comportam alegria? Por que nenhuma criança ri?


JOGOS INFANTIS
[Nicanor Parra; trad. Nina Rizzi]

I

Um menino para seu voo na torre da catedral
e começa a brincar com os ponteiros do relógio
se apóia sobre eles impedindo que avancem
e como por arte de magia os passantes são petrificados
em uma atitude xis
com um pé no ar
olhando para trás como a estátua da mulher de Ló
acendendo um cigarro etc., etc.
Depois pega os ponteiros e os gira a toda velocidade
para-os abruptamente -os gira ao contrário
e os passantes correm-lenta bruscamente
recuam a todo vapor
como no cinema mudo as imagens permanecem em suspenso
trotam ao norte-sul
ou caminham solenemente em câmera lenta
no sentido contrário aos ponteiros do relógio.
Um casal se casa – tem filhos e se divorcia em uma fração de segundo
os filhos também se casam-morrem.

Enquanto isso o menino
Deus ou como queira ser chamado
Destino ou simplesmente Cronos se entedia como uma ostra
E levanta voo em direção ao Cemitério Geral.

II

Tal como indicado no poema anterior
o menino travesso chega ao cemitério
pula em cima dos túmulos
os defuntos se incorporam às covas
tiros são ouvidos ao longe
reina a confusão geral.

Os defuntos parecem cansados
com os pés cobertos de terra
e mesmo sem abandonar os túmulos
conversam animadamente entre si
como atletas tomando uma ducha.

Trocam impressões sobre o Além
alguns procuram objetos perdidos
outros se ajoelham até afundar na terra
enquanto avançam para a porta do cemitério.

III

Morto de rir o menino volta à cidade
Faz parir monstros
Provoca terremotos
Mulheres correm nuas em pelo
Anciãos que parecem fetos riem e fumam.

Rompe uma tempestade
Que culmina com a aparição de uma mulher crucificada.

JUEGOS INFANTILES

I

Un niño detiene su vuelo en la torre de la catedral
y se pone a jugar con los punteros del reloj
se apoya sobre ellos impidiéndoles avanzar
y como por arte de magia los transeúntes quedan petrificados
en una actitud equis
con un pie en el aire
mirando hacia atrás como la estatua de Loth
encendiendo un cigarrillo etc., etc.
Luego toma los punteros y los hace girar a toda velocidad
los detiene en seco -los hace girar al revés
y los transeúntes corren-frenan bruscamente
retroceden a toda máquina
como en el cine mudo las imágenes se quedan en suspenso
trotan en dirección norte-sur
o caminan solemnemente a cámara lenta
en sentido contrario a los punteros del reloj.
Una pareja se casa - tiene hijos y se divorcia en fracciones de segundo
los hijos también se casan-mueren.

Entretanto el niño
Dios o como quiera llamársele
Destino o simplemente Cronos se aburre como una ostra
y emprende el vuelo en dirección al Cementerio General.

II

Tal como se indicó en el poema anterior
el niño travieso llega al cementerio
hace saltar la tapa de los sepulcros
los difuntos se incorporan de las tumbas
se oyen golpes a la distancia
reina un desconcierto general.

Los difuntos parecen cansados
con los pies llenos de tierra
y sin abandonar aún las tumbas
conversan animadamente entre sí
como deportistas que se dan una ducha.

Cambian impresiones sobre el Más Allá
algunos buscan objetos perdidos
otros se hunden hasta la rodilla en la tierra
mientras avanzan en dirección a la puerta del camposanto.

 III

Muerto de risa el niño vuelve a la ciudad
hace parir monstruos
provoca temblores de tierra
desnudas corren mujeres con pelo
ancianos que parecen fetos ríen y fuman.

Estalla una tempestad eléctrica
que culmina con la aparición de una mujer crucificada.

IN: Nicanor Parra, Obra gruesa. Santiago, Universitaria, 1969.

 Ray Respall Rojas (Cuba, 1987-). Circo, desenho em grafite.

poemeto infantil

mamaí, o pedrinho quis brincar de médico comigo.
mas eu não brinquei não, viu!

'inda disse que só brinco se for com vovô.

- nina rizzi


UM PARQUE DE DIVERSÕES NA CABEÇA – 16

O Castelo de Kafka ergue-se sobre o mundo
como uma última bastilha
do Ministério da Existência
Seus acessos cegos nos confundem
Rotas íngremes
partem dele em direção a lugar algum
Estradas irradiam-se pelos ares
como um labirinto de fios
de uma central telefônica
através da qual todas as chamadas
mergulham no infinito insondável
Lá em cima
reina um clima perfeito
As almas dançam nuas
em grupos
e como vagos vadios
nos arredores de uma feira
Cobiçamos o inacessível
mistério imaginado
No entanto na parte de trás do castelo
como na entrada para o picadeiro de um circo
há uma fenda profunda, profunda nas muralhas
através da qual até os elefantes
podem entrar dançando

- Lawrence Ferlinghetti; trad. Eduardo Bueno



SIGA BRINCANDO: com a cena inicial de Les Triplettes de Belleville/ As Bicicletas de Belleville (França, 2003), de Sylvain Chomet. Porque é possível fazer animação sem a parafernália do 3D; porque é possível fazer cinema com poesia e boa-música; porque é possível se superar; porque é deliciosa a repetição de números 69, 69, 69; porque in vino veritas; porque podemos fazer o impossível sem "promessas inúteis". 

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