sexta-feira, 25 de abril de 2014

CORRESPONDÊNCIAS: ELIZABETH BISHOP


Manuscrito de Arrival at Santos, Elizabeth Bishop

CHEGADA EM SANTOS

Eis uma costa; eis um porto;
após uma dieta frugal de horizonte, uma paisagem:
morros de formas nada práticas, cheios – quem sabe? – de autocomiseração,
tristes e agrestes sob a frívola folhagem,

uma igrejinha no alto de um deles. E armazéns,
alguns em tons débeis de rosa, ou de azul,
e umas palmeiras, altas e inseguras. Ah, turista,
então é isso que esse país tão longe ao sul
tem a oferecer a quem procura nada menos

que um mundo diferente, uma vida melhor, e o imediato
e definitivo entendimento de ambos
após dezoito dias de hiato?

Termine o desjejum. Lá vem o navio-tênder,
uma estranha e antiga embarcação, 
com um trapo estranho e colorido ao vento.
A bandeira. Primeira vez que a vejo. Eu tinha a impressão
de que não havia bandeira, mas tinha de haver,
tal como cédulas e moedas – claro que sim.
E agora, cautelosas, descemos de costas a escada,
eu e uma outra passageira, Miss Breen,
num cais onde vinte e seis cargueiros aguardam
um carregamento de café que não tem mais fim.
Cuidado, moço, com esse gancho! Ah!
Não é que ele fisgou a saia de Miss Breen
coitada! Miss Breen tem uns setenta anos,
um metro e oitenta, lindos olhos azuis, bem
simpática. É tenente de polícia aposentada.
Quando não está viajando, mora em Glens Falls,
estado de Nova York. Bom. Conseguimos.

Na alfândega deve haver quem fale inglês e não
implique com nosso estoque de bourbon e cigarros.
Os portos são necessários, como os selos e o sabão,
e nem ligam para a impressão que causam.
Daí as cores mortas dos sabonetes e selos – 
aqueles desmancham aos poucos, e estes desgrudam
de nossos cartões-postais antes que possam lê-los
nossos destinatários, ou porque a cola daqui
é muito ordinária, ou então por causa do calor.
Partimos de Santos imediatamente;
Vamos de carro para o interior.

 Janeiro de 1952

- Elizabeth Bishop, 
Iceberg Imaginário e Outros Poemas, Trad.: Paulo Henriques Britto, 2001.
*

Elizabeth Bishop na pena de Lota Macedo de Soares. 

NA SALA DE ESPERA

Em Worcester, Massachusetts,
fui com minha Tia Consuelo
à sua consulta com o dentista
e sentei e esperei por ela
na sala de espera do dentista.
Era inverno. Bem cedo
escurecia. A sala de espera
estava cheia de adultos,
manteaux e sobretudos,
abat-jours e revistas.
Fazia muito tempo que lá dentro
estava minha tia, ou isto ao menos
pensei. Enquanto esperava
lia a National Geographic
(eu já sabia ler) e com cuidado
estudava as fotografias:
o interior de um vulcão,
negro, cheio de cinzas;
súbito ele cuspia
por mil rios de fogo.
Osa e Martin Johnson
vestidos com capacetes,
culotes e botas de laço.
Um homem morto pendido
de uma haste – “Nem Um Pio”,
dizia o cabeçalho. Bebês
com as cabeças em ponta, enroladas
por voltas e voltas de uma corda;
negras desnudas, com pescoços
enrolados por voltas e voltas de arames
como os pescoços das lâmpadas elétricas.
Seus peitos eram horripilantes.
Li o artigo de ponta a ponta.
Era demasiado tímida para
parar. Então olhei a capa:
as margens amarelas, a data.
De repente, lá de dentro veio
um oh! de dor – era a voz
de Tia Consuelo – nem alto
nem prolongado. Não me surpreendi;
já então sabia que se tratava
de uma mulher tímida e tonta.
Eu podia ter ficado sem jeito,
mas não fiquei. Minha surpresa
total foi perceber que era eu:
minha voz, minha boca.
Completamente sem pensá-lo
eu era a tonta de minha tia,
e eu – nós – estávamos caindo,
caindo, nossos olhos colados à capa
da National Geographic, número
de fevereiro de 1918.

Disse-me a mim mesma: em três dias
você terá sete anos de idade.

Repetia isto para cessar
a sensação de cair fora
do chão, que transformava o mundo
num espaço frio, azul escuro.
Porém entendi: você é um Eu,
é uma Elizabeth,
você é um deles.
Por que não seria um, você também?
Eu mal podia olhar para conferir
o que é que eu também era.
Dei uma olhada de viés
– não podia fazê-lo de frente –
nos joelhos acinzentados,
calças e saias e botas
e pares de mãos diferentes
que os abat-jours iluminavam
de cima. Eu sabia que nada estranho
tinha passado, que de estranho
nada jamais passaria.
Por que seria eu Tia Consuelo,
ou eu mesma, ou um alguém
qualquer? Que semelhanças –
botas, mãos, a voz da família
na garganta sentida, ou até
National Geographic e aqueles
horrorosos seios caídos –
nos mantinham juntos
ou nos faziam ser um apenas?
Como tão – eu não conhecia
a palavra adequada – tão “despropositadamente”...
viera eu parar ali,
como eles, para ouvir forte demais
um grito de dor que podia
ter sido mais forte e pior mas não fora?



A sala de espera estava cheia de luz
e calor. Eu escorregava detrás
de uma onda negra e enorme,
e de outra, de mais outra.

De repente eu estava de volta à sala.

A Guerra seguia. Lá fora,
em Worcester, Massachusetts,
havia noite e neve aguada e frio,
e ainda era o dia cinco
de fevereiro, 1918.


- Elizabeth Bishop, Poesias. Companhia das Letras, 1990; publicado originalmente em 1976.
*

Elizabeth Bishop, Cabin with Porthole. Aquarela e guache. 

O XAMPU
Tradução de Nina Rizzi

As explosões permanecem sobre as rochas,
os líquens, crescem
espalhando cinza, choques concêntricos.
Eles têm um encontro
para atender os anéis ao redor da lua, embora
dentro de nossas lembranças não tenham sido alterados.

E desde que os céus estejam assim
acima de nós,
você permanece, caro amigo,
precipitado e pragmático;
e olha o que acontece. Pois o Tempo é
nada se não for favorável.

As estrelas cadentes no seu cabelo preto
na formação de brilhante
estão reunindo-se,
tão simples, tão cedo?
- Vem, deixa eu lavá-lo na bacia de lata grande,
esburacadas e brilhante como a lua.

THE SHAMPOO

The still explosions on the rocks,
the lichens, grow
by spreading, gray, concentric shocks.
They have arranged
to meet the rings around the moon, although
within our memories they have not changed.

And since the heavens will attend
as long on us,
you've been, dear friend,
precipitate and pragmatical;
and look what happens. For Time is
nothing if not amenable.

The shooting stars in your black hair
in bright formation
are flocking where,
so straight, so soon?
- Come, let me wash it in this big tin basin,
battered and shiny like the moon.

Elizabeth Bishop, A Cold Spring, 1955
*


O ICEBERG IMAGINÁRIO

O iceberg nos atrai mais que o navio,
mesmo acabando com a viagem.
Mesmo pairando imóvel, nuvem pétrea,
e o mar um mármore revolto.
O iceberg nos atrai mais que o navio:
queremos esse chão vivo de neve,
mesmo com as velas do navio tombadas
qual neve indissoluta sobre a água.
Ó calmo campo flutuante,
sabes que um iceberg dorme em ti, e em breve
vai despertar e talvez pastar na tua neve?
Esta cena um marujo daria os olhos
pra ver. Esquece-se o navio. O iceberg
sobe e desce; seus píncaros de vidro
corrigem elípticas no céu.
Este cenário empresta a quem o pisa
uma retórica fácil. O pano leve
é levantado por cordas finíssimas
de aéreas espirais de neve.
Duelo de argúcia entre as alvas agulhas
e o sol. O seu peso o iceberg enfrenta
no palco instável e incerto onde se assenta.
É por dentro que o iceberg se faceta.
Tal como joias numa tumba
ele se salva para sempre, e adorna
só a si, talvez também as neves
que nos assombram tanto sobre o mar.
Adeus, adeus, dizemos, e o navio
segue viagem, e as ondas se sucedem,
e as nuvens buscam um céu mais quente.
O iceberg seduz a alma
(pois os dois se inventam do quase invisível)
a vê-lo assim: concreto, ereto, indivisível.

- Elizabeth Bishop, O Iceberg Imaginário e Outros Poemas;  trad. Paulo Henriques Britto. Companhia das Letras, 2001.
*

Elizabeth Bishop e o amigo poeta e incentivador Robert Lowell


A poeta quando criança, na lente de Sponagle.
O MAPA

Terra entre águas, sombreada de verde.
sombras, talvez rasos, lhe traçam o contorno,
uma linha de recifes, algas como adorno,
riscando o azul singelo com seu verde.
Ou a terra avança sobre o mar e o levanta
e abarca, sem bulir suas águas lentas?
Ao longo das praias pardacentas
será que a terra puxa o mar e o levanta?
A sombra da Terra Nova jaz imóvel.
O Labrador é amarelo, onde o esquimó sonhador
o untou de óleo. Afagamos essas belas baías,
em vitrines, como se fossem florir, ou como se
para servir de aquário a peixes invisíveis.
Os nomes dos portos se espraiam pelo mar,
os nomes das cidades sobem as serras vizinhas
— aqui o impressor experimentou um sentimento semelhante
ao da emoção ultrapassando demais a sua causa.
As penínsulas pegam a água entre polegar e indicador
como mulheres apalpando pano antes de comprar.
As águas mapeadas são mais tranquilas que a terra,
e lhe emprestam sua forma ondulada:
a lebre da Noruega corre para o sul, afobada,
perfis investigam o mar, onde há terra.
É compulsório, ou os países escolhem as suas cores?
— As mais condizentes com a nação ou as águas nacionais.
Topografia é imparcial; norte e oeste são iguais.
Mais sutis que as do historiador são do cartógrafo as cores.

Elizabeth Bishop, Poemas Escolhidos;  trad. Paulo Henriques Britto. Companhia das Letras, 2012.
*

A poeta enquanto jovem mulher

CÃO-DE-ROSA
Tradução de Nina Rizzi

[Rio de Janeiro]

O sol é escaldante e o céu azul.
Guarda-chuvas vestem a praia de todos os matizes.
Nua, entre o passo ordinário e a corrida, você cruza a avenida.

Ó, nunca vi um cão tão nu!
Nu, cor-de-rosa, sem um único fio de cabelo cão-de-rosa…
Assustados, os passantes recuam e olham fixamente.

Claro que estão mortalmente com medo de raiva.
Você não está louco; é um caso de sarna
tem o olhar sagaz. Onde estão seus bebês?

(A mãe, feito enfermeira, com as tetas cheias, supensas)
Em que favela você os escondeu, puta pobre, cadela,
enquanto implora, vive de seus olhos e sagacidade?

Você não sabia? Saiu em todos os jornais o que fazem
para resolver esse tipo de problema; como você acha que lidam com os medigos?
Eles os seduzem como a iara e os jogam na maré cheia.

Sim, idiotas, paralíticos, parasitas
todos vão nadando no esgoto que flui nas periferias escuras.

Se fazem isso com quem implora, padece,
bêbedos e drogados e sóbrios, com as pernas tomadas pela gota e a cirrose
o que não fariam por um doente de quatro, cadelas?

Nos cafés, calçadas e esquinas
a piada é arengue com os mendigos
ao invés de dar esmolas, dão coletes salva-vidas.

Mas você, cão-de-rosa, não seria capaz
de remar com suas pernas ou mesmo boiar.
Veja, o prático, a sensível

solução é se mascarar.
Esta noite você não poderá se dar ao luxo de ser essa m-
erda monstruosa. Será única, cão-de-rosa mascarado fora de época.
Vem uma quarta de cinzas, mas aqui todo dia é carnaval, feriado nacional.
Você pode sambar? Como vai se fantasiar?

Todos dizem que o Carnaval é um festejo degenerado
- as rádios, os estadunidenses, essa gentinha
que arruina tudo o que é da gente. Mas é conversa fiada.

O Carnaval é sempre maravilhoso, redenção!

Contudo, um cão depilado, mesmo rosa, não fica bem.
Vá! se fantasie, se mascare e dance o Carnaval!

Fortaleza, 2011

PINK DOG

[Rio de Janeiro]

The sun is blazing and the sky is blue.
Umbrellas clothe the beach in every hue.
Naked, you trot across the avenue.

Oh, never have I seen a dog so bare!
Naked and pink, without a single hair…
Startled, the passersby draw back and stare.

Of course they’re mortally afraid of rabies.
You are not mad; you have a case of scabies
but look intelligent. Where are your babies?

(A nursing mother, by those hanging teats.)
In what slum have you hidden them, poor bitch,
while you go begging, living by your wits?

Didn’t you know? It’s been in all the papers,
to solve this problem, how they deal with beggars?
They take and throw them in the tidal rivers.

Yes, idiots, paralytics, parasites
go bobbing int the ebbing sewage, nights
out in the suburbs, where there are no lights.

If they do this to anyone who begs,
drugged, drunk, or sober, with or without legs,
what would they do to sick, four-legged dogs?

In the cafés and on the sidewalk corners
the joke is going round that all the beggars
who can afford them now wear life preservers.

In your condition you would not be able
even to float, much less to dog-paddle.
Now look, the practical, the sensible

solution is to wear a fantasía.
Tonight you simply can’t afford to be a-
n eyesore… But no one will ever see a

dog in máscara this time of year.
Ash Wednesday’ll come but Carnival is here.
What sambas can you dance? What will you wear?

They say that Carnival’s degenerating
— radios, Americans, or something,
have ruined it completely. They’re just talking.

Carnival is always wonderful!
A depilated dog would not look well.
Dress up! Dress up and dance at Carnival!

1979
*

A poeta no Rio de Janeiro, 1954.

«A ELISABETH FOI-SE EMBORA


(com algumas coisas de Anne Sexton)

 Eu que já fui do pequeno-almoço à loucura
eu que já adoeci a estudar morse
e a beber café com leite
não posso passar sem a Elisabeth
porque é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth?
eu só gosto que seja a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça
eu só venho cá senhora doutora
para a Elisabeth me lavar a cabeça
só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade
de que eu gosto nos shampoos
só ela sabe como eu gosto da água quase fria
a escorrer-me pela cabeça abaixo
eu não posso passar sem a Elisabeth
não me venha dizer que o tempo cura tudo
contava com ela para o resto da vida
a Elisabeth era a princesa das raposas
precisava das mãos dela na minha cabeça
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu anti-séptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida»

Adília Lopes, Dobra: Poesia Reunida, 1983-2007. Assírio e Alvim, 2009.


















outra arte:

vê-la a cada dia

- sempre me interessei por seu corpo
sua cara amassada.

[bandeiriana, pensando em bishop, nina rizzi]



elizabeth from nina rizzi on Vimeo.

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