terça-feira, 24 de junho de 2014

Correspondências: Mosaico



Fotografia de Nina Rizzi sobre pop art do IVAM - Instituto Valenciano de Arte Moderna/ Espanha.

CATANDO OS CACOS DO CAOS

Catar os cacos do caos
como quem cata no deserto
o cacto
- como se fosse flor.

Catar os restos e ossos
da utopia
como de porta em porta
o lixeiro apanha
detritos da festa fria
e pobre no crepúsculo
se aquece na fogueira erguida
com os destroços do dia.

Catar a verdade contida
em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas
no pêlo
- do dia cão.

Recortar o sentido
como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso
com a inconsútil emenda
à vista.

Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.

Catar os cacos de Dionisio
e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho
ou sangue vertido.

Catar os cacos de Orfeu partido
pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer
o fígado
- como era antes.

Catar palavras cortantes
no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras
o brilho do diamante.

É um quebra-cabeça? Então
de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada
deixar gravada a emoção

Cacos de mim
Cacos do não
Cacos do sim
Cacos do antes
Cacos do fim

Não é dentro
nem fora
embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora
que violento
o sentido nos deflora.

Catar os cacos
do presente e outrora
e enfrentar a noite
com o vitral da aurora

- Affonso Romano de Sant'Anna


Taddeo Gaddi (italiano, m. 1366). O encontro de Joaquim e Ana, 1338. Afresco, S. Croce, Florença.

Todos os artistas têm de lutar com os elementos materiais de sua arte. Os materiais usados por eles têm propriedades difíceis de controlar e até, por vezes, imprevisíveis, e, o mais complicado de tudo, não é nada fácil para os artistas encontrar uma forma de mostrar em tinta, carvão, mosaico ou vidro exatamente do modo planejado. O êxito da produção de uma grande obra de arte é uma rara e maravilhosa proeza.

Os artistas contam, frequentemente, com uma tradição para ajudá-los. Existem formas aceitas de narrar histórias consagradas, e isso significa que um pintor nem sempre tem de repensar cada elemento num quadro. Por exemplo, muitos pintores do século XIV ilustraram a comovente história de Joaquim e Ana, os pais de Maria. Eles tinham envelhecido sem filhos, e esse fato muito os contristava. Depois de muito sofrimento e muita oração, seu desejo de terem um filho foi cumprido finalmente. Um anjo desceu até Joaquim, quando este estava cuidando de seu rebanho, e disse-lhe que ele iria, enfim ser pai; nesse meio tempo, outro anjo acercou-se de Ana, enquanto ela estava em sua horta, e deu-lhe a mesma notícia milagrosa. Os dois anciãos, rejubilando com a inesperada resposta a suas preces, correram ao encontro um do outro e, quando Joaquim regressava da montanha e Ana saía apressada de sua casa, encontraram-se na porta dourada da cidade. Esse era o feliz momento que os pintores habitualmente escolhiam para ilustrar.

Taddeo Gaddi, dá-nos uma competente representação da cena: equilibrada, circunspecta, notavelmente superior às representações comuns. Joaquim e Ana estão praticamente no centro da pintura; estendem carinhosamente as mãos um para o outro, e olham-se profundamente nos olhos. A muralha da cidade, atrás deles, isola suas cabeças, emolduradas por halos, enquanto, à esquerda, a figura de um pastor indica que Joaquim acaba de chegar do campo, e a mulher atrás de Ana mostra que esta saiu da cidade há poucos instantes. Numa leitura da simbologia corporal pode-se observar que seus corpos negam o beijo, pelos pés que se afastam do corpo, no que provavelmente o artista quis transmitir leveza e ternura.

Giotto di Bondone (italiano, ca. 1267-1337), O encontro de Joaquim e Ana, ca. 1304-1313. Afresco na Capela Scrovegni (arena), Pádua.

Mas um grande artista como Giotto transforma uma cena tão convencional em algo muito mais profundo e comovedor. As duas figuras principais não estão colocadas no centro, mas as linhas da composição guiam inexoravelmente nosso olhar para o núcleo emocional da história. Beijam-se ternamente. A curva de seu afetuoso abraço, tão estreito que suas figuras se fundem num único contorno, repete-se ampliada no grande arco do portão da cidade, à sua direita. A própria forma arquitetônica aumenta nossa apreciação do conteúdo da cena.
*

sobre mosaico fluido – impressões e expressões 
por guilherme gontijo flores


saiu faz pouco uma nova edição de poesia traduzida pela lumme editor: mosaico fluido, do dominicano león félix batista (1964-), em versões da poeta adriana zapparoli. a poesia dele já havia aparecido por estas margens numa antologia, prosa do que está na esfera,  organizada & traduzida por claudio daniel & fabiano calixto, ainda em 2003. aqui temos um livro inteiro, o que é sempre importante para entendermos melhor a obra de um poeta que vai se aclimatando no brasil. a tradução de zapparoli é um trabalho cuidadoso, atento às sonoridades da poesia na língua original & na língua de chegada. basta lermos um poema curto para percebermos como funciona seu trabalho:

cuando amé depredé

las superficies tersas
el volátil equilibrio de la duna

cuando vi siempre ardí
con la piel del farallón
en los ángulos agudos del menguante

una ola destroncada
de la masa corroída
sólo escupe contenidos epilépticos


quando amei depredei

as superfícies tersas
o equilíbrio volátil da duna

quando vi para sempre ardi
com a pele de falésia
nos ângulos agudos do minguante

uma onda arrancada
da massa corroída
apenas cospe conteúdos epilépticos


diante os jogos sonoros do original, tais como en los ánGUlos aGUdos del menGUante, zapparoli aproveita a proximidade das línguas (“nosânGUlos aGUdos do minGUante”); porém nos trechos em que a sonoridade diverge, vemos soluções que reformulam a sonoridade no português, com algumas belas soluções: é o caso de “pELE da fALÉsia”, ou do detalhe de “ONda arrANcada” que ainda ecoará no verso seguinte em “massa corroída”. a cada poema do livro, é possível ver os momentos em que as línguas se encontram & se afastam, mas melhor que contabilizar proximidades & distâncias, será ver como essas distâncias manejadas por adriana zapparoli é que, de fato, reformulam a poesia de león félix batista.


 >> guilherme gontijo flores (brasília, 1984) é poeta, professor e tradutor. estreou com os poemas de brasa enganosa (2013). publicou traduções de as janelas, seguidas de poemas em prosa franceses, de rainer maria rilke (em parceria com bruno d'abruzzo), e d'a anatomia da melancolia, de robert burton, em 4 volumes (prêmio apca de melhor tradução). neste momento prepara a tradução integral das elegiasde sexto propércio. participa do blog coletivo escamandro (www.escamandro.wordpress.com), que agora também é uma revista impressa.

MOSAICO FLUIDO
Autor: BATISTA, LEON FELIX
Tradutor: ZAPPAROLI, ADRIANA
Idioma: PORTUGUÊS
Editora: LUMME EDITOR
Assunto: LITERATURA ESTRANGEIRA


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