segunda-feira, 26 de maio de 2014

das estranhezas de Ivon Rabelo

Uma menina morta narra a trajetória de sua peculiar família: dozes irmãos incestuosos que transitam entre uma existência angustiada pontuada pela perversidade e a morte. Esse é o mote de Entes Queridos, miniconto novelesco em doze instâncias, de Ivon Rabelo. Remetendo suas personagens a um ambiente aristocrático vitoriano decadente, Ivon constrói sua narrativa como uma espécie de litania maligna. Uma escrita original e ímpar.

Marion Peck



[#6] "Andrew"

Tudo começou quando ele a viu sonâmbula, a falar em grego, caminhando pelo jardim, na madrugada sem lua. Naquele pátio sem perfume, sufocado pela paixão em tê-la nua, a romper de vez sua puberdade e donzelice, arquitetou o plano malévolo que tomaria corpo e culpa na manhã seguinte: sem ameias, proporia à irmã caçula o sexo incestuoso, única via para perpetuar a condição em que vivíamos, nós, a dita prole maldita daqueles pais condenados. No dia seguinte àquela visão infame, diante dos estudos e leituras, Andrew alienou-se de tudo e de todos e cometeu o ato-bárbaro. Como prêmio, foi compelido por todos nós, cúmplices de mesma linhagem, a velar a cabeça degolada de Helen, cuidando-a e respeitando-a, em sua saúde e em sua decomposição, para amá-la e conservá-la sempre jovem, como se ela tivesse exatamente os treze anos de sua idade-morte. Na primeira semana de esponsais, em furor obsessivo, ele comeu-lhe os olhos, a língua e as orelhas, arrancando as mesmas suas próprias partes, logo depois, juntamente com seu coração.


[#7] "Tom"

Aos cinco anos de idade, Tom já sabia encaixar adequadamente o cano do revólver de plástico no próprio céu da boca ou mesmo apontar a arma para a têmpora esquerda, sua ou alheia. Sinistro, manejava bem, com ambas mãos, as facas e o fio de seus cortes, os garfos em seus tridentes afiados, uma colher e seu pendor-liquidez de retenção. Só não poderia deter os segredos do manejo de sua própria lógica, frente à ruivez escaldante de sua vida. De temperamento fleumático, após meses de planejamento e flagelação, quando chegou a hora, desfez-se das mãos, doando-as cortadas aos dois irmãos que o ajudaram na árdua tarefa da automutilação. Exangue, minutos antes de morrer, gritou loas e praguejou impropérios contra mim, a assassina vil da única irmã a quem amava cega e mortalmente.


[Ivon Rabelo é de Sertânia e vive em Recife. Ainda sem editora, pretende publicar Entes Queridos em 2014]


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