quarta-feira, 18 de junho de 2014

sobre certo voyerismo: a poesia de Bruno Latorre



Bruno Latorre reconstrói o cotidiano misturando dois tipos de cimento: ironia e intimidade. Como aquelas fotografias que se viam por um monóculo, sua poesia se equilibra entre o público e o privado, a rua e o quarto, a paisagem exterior e o olho voyeur, convidado a espiar. Não por acaso, seu lirismo remete a poéticas como a de Adília Lopes e Adélia Prado. Bruno não tem livro publicado e acha mais prudente amadurecer um projeto de publicação. Tem poemas publicados nas revistas Germina e em Vinagre - uma antologia de poetas neobarrocos, organizada por  Fabiano Calixto e Eduardo Sterzi.

© Mary Robinson

FAMÍLIA CLASSE C
A família classe C
está sempre ocupada
mais que a classe média
que contrata encanadores
A família classe C
delega ocupações
à mãe toda a limpeza
ao pai os consertos rústicos
ao filho os aparelhos tecnológicos
à filha as brigas com a mãe
Passam o dia todo ocupados
com a casa que um dia vai ser bonita
O filho lava o carro
do pai
A filha passa esmalte
em casa
A mãe vai ao salão
da esquina
E o pai toma Skol
aos sábados

E lá no quarto mais escondido da casa
o filho caçula
ovelha negra da família
escreve poemas urgentes
Entrementes,
querendo ser gente



POETA É A PUTA QUE O PARIU

sou poeta de quinta categoria
não fiquei no claustro
limando a escrita
fiz minha poesia nas esquinas
vendo as putas sendo pagas
por homens sem amor
minha poesia não tem rima
é a vida torta
um horror



LUIZ

o jantar à luz de velas
emprestadas da vizinha
já está na mesa
com copos de plástico
do Wallmart que a gente ía

esqueci de pagar as contas
ó meu deus
quem se esquece de pagar as contas?
quando o pior esquecimento
é o seu?

você foi tão longe
que sua escova de dentes já está seca
sou somente eu
e o meu fiapo de noite escura

você consegue ouvir os vizinhos do 208?
cara, isso sim é selvagem
isso sim é amor
isso sim interrompe o meu silêncio

agora venha e feche todas as janelas
tire a roupa pois a brancura da tua pele
me orienta no breu
se não enxergo nesta casa
é que Luiz é que me falta
aquilo que é meu



MEU AMOR
Meu amor, venha aqui
e olhe minha cara
de grã-fino
com pele de alabastro
como um poeta antigo
Mas, meu bem
Veja bem
O dinheiro é que não me tem
E o Fasano não me tem
em sua mesa
Quais talheres usar?
Nem tenho um Alexander Calder
no escritório
Como Ferreira Gullar
que já está velho & rico
Muito menos tenho foto
na praça Charles de Gaulle
Por mim saindo doze avenidas
Por que nem a Paris, meu amor
Eu não fui
E meu arco do triunfo
não é o dinheiro
Mas, meu bem
Você pode me levar aos seus amigos
galeristas viajados modernérrimos
que discorrerei longamente
todas as artes
A fotografia de Francesca Woodman
que sofro tanto!
O minotauro de Alzamora
meu desalento!
A poesia concretista
que design!
A prosa de Getrude Stein
que labirinto!
Vou fingir até
que fui ao Inhotim
aqui no Brasil
perto de você e de mim
Mas agora me leve embora
que eu moro longe
acordo cedo
trabalho tanto
e conhecendo tanto
toda a arte do mundo que sei
sei que nada disso vale
se não vale o seu amor
por mim



DISSERAM QUE

disseram que era uma poesia prosaica
mas bem mais proteica
com arroz, feijão, bife e batata

disseram que era uma poesia sem métrica
mas bem menos cansada
que aquela velha poesia patética

disseram que era uma poesia despreocupada
mas bem mais feliz
escrevendo sobre o nada

disseram que era uma poesia laissez-faire
mas bem mais democrática
escrevendo quem quiser

disseram-me pateta
mas ainda hei de provar que sou
um grande poeta



Um comentário:

  1. escreves linda e perigosamente como a vida ; parabéns Bruno Latorre , me mande um convite na noite de autografos - eu que não saio desta montanha pra coisa alguma , darei um jeito de ir .

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